Como é de conhecimento dos leitores, este blog se dedica a explorar temas do cotidiano que nos afetam profundamente. Hoje, abordaremos um assunto que permeia a realidade de inúmeras famílias: o cuidado com pessoas diagnosticadas com demência e Alzheimer, uma jornada que exige paciência, conhecimento e, acima de tudo, muito afeto.
O Impacto do Diagnóstico e a Jornada Familiar
O diagnóstico de uma doença neurodegenerativa, como o Alzheimer, ou mesmo a percepção de um declínio cognitivo acentuado após eventos como um Acidente Vascular Cerebral (AVC), é um momento de grande impacto para toda a família. A notícia frequentemente desencadeia um sentimento de choque e impotência, gerando a dolorosa pergunta: “Como será um mundo onde a pessoa que amamos não se lembrará mais de nós?”.
Para os familiares, inicia-se um processo de reaprendizagem. É preciso aprender a conviver com uma nova realidade, onde a pessoa cuidada pode vagar entre o passado e o presente, e onde falas e atitudes podem, à primeira vista, não fazer mais sentido. Ver um ente querido lutar contra o próprio esquecimento é uma das experiências mais desafiadoras, e o papel do cuidador e da família se torna central nesse novo capítulo.
Da Angústia à Ação: A Busca por Conhecimento
Diante do desafio, a busca por conhecimento torna-se um passo fundamental. Entender a condição, seja através de cursos, literatura especializada, profissionais da saúde ou da troca de experiências, é o que permite transformar a angústia em ação. Compreender que a mente humana é uma complexa teia de recordações e que a perda delas é um processo gradual e doloroso, nos capacita a oferecer um cuidado mais empático e eficaz.
A jornada de aprendizado revela que, embora a medicina ainda não tenha uma cura, existem estratégias e abordagens que podem melhorar significativamente a qualidade de vida do paciente, retardar o avanço dos sintomas e fortalecer os laços afetivos que a doença ameaça apagar. De fato, a falta de atividade cognitiva acelera o declínio cognitivo (SACIDO et al., 2023), podendo contribuir para a deterioração tanto de idosos cognitivamente saudáveis, quanto de pacientes com demência.
Metodologia
O presente trabalho caracteriza-se como um estudo de caso qualitativo, realizado a partir da aplicação da ferramenta “Jogo da Memória Afetiva”, desenvolvida pela autora. Participaram da intervenção dois participantes: uma paciente de 70 anos (Paciente M), diagnosticada com demência; e um paciente de 52 anos (Paciente K), com diagnóstico de Deficiência Cognitiva Leve (DCL). A coleta de dados ocorreu por meio de observação direta das sessões e registro em diário de campo, com foco na análise da evolução da capacidade de recordação e da consistência narrativa ao longo de múltiplas aplicações do jogo.
A Gênese do Jogo da Memória: Uma Ferramenta de Estímulo
A partir dessa jornada de aprendizado, uma ideia simples, porém poderosa, começou a tomar forma: e se pudéssemos ativamente induzir lembranças, ajudando a pessoa a acessar suas memórias diariamente? Seria possível, com isso, retardar o processo de esquecimento?
Diante desse cenário, foi desenvolvido um jogo de memória inovador, criado especificamente para pessoas com Alzheimer e outros tipos de demência. Sua concepção baseou-se na observação de padrões de esquecimento e nas necessidades cognitivas e emocionais desses indivíduos. O objetivo do jogo é estimular o raciocínio e a atenção, tanto afetivas quanto funcionais, proporcionando benefícios diretos para os participantes e seus cuidadores.
Foi assim que nasceu um “Jogo da Memória” terapêutico e afetivo. A mecânica é simples e baseada na gentileza:
- O Estímulo: Quando o paciente demonstra estar esquecendo algo, em vez de fornecer a resposta imediatamente, faz-se uma pergunta gentil como: “Você tem certeza de que não se lembra disso?”.
- O Tempo para Raciocinar: Este questionamento dá à pessoa um momento para parar, pensar e tentar acessar a informação por conta própria. Esse esforço cognitivo é, por si só, um exercício valioso para o cérebro.
- A Celebração do Sucesso: Na maioria das vezes, após um breve esforço, a pessoa consegue se lembrar. Quando isso acontece, a sensação de orgulho e realização é visível, fortalecendo sua autoestima e confiança.
- A Correção Sutil: Caso a resposta venha errada, o cuidador pode corrigi-la de forma natural e seguir a conversa, sem transformar o momento em um teste ou causar constrangimento.
Cartas personalizadas podem ser usadas para perguntas do cotidiano ou de memória afetiva, facilitando o jogo e tornando-o mais envolvente. Observou-se que picos de estresse e ansiedade geralmente ocorrem no auge do esquecimento. O jogo não apenas exercita a memória, mas também reduz esses episódios, trazendo mais calma ao dia a dia.
Estudo de caso – Paciente M. e Paciente K.
Para preservar a identidade, chamaremos os participantes de Paciente M. e Paciente K.
Uma mulher de 70 anos, diagnosticada com demência, que participou da aplicação do Jogo da Memória Afetiva. Na primeira experiência, ao ser questionada sobre o nome de um irmão muito querido, não conseguiu se recordar de imediato. Após receber uma dica, conseguiu lembrar, e esse resgate desencadeou diversas outras lembranças relacionadas a ele. Na segunda aplicação, quando novamente foi perguntado sobre os irmãos homens, conseguiu recordar sozinha, sem auxílio, e trouxe à tona lembranças que antes não havia compartilhado. Já na terceira vez, além de repetir corretamente os nomes, acrescentou histórias e detalhes, mostrando um processo de recuperação e fortalecimento de memórias afetivas.
Para ilustrar de forma mais concreta o impacto do Jogo da Memória Afetiva na cognição, acompanhamos o Paciente K., que costumava contar a mesma história com versões diferentes, complementando trechos esquecidos com invenções. Ao longo de quatro sessões, observou-se uma melhora progressiva na recordação episódica, na consistência da narrativa e na redução de confabulações. A tabela a seguir apresenta a evolução do desempenho do paciente de acordo com a escala ADAS-Cog, utilizada para avaliar memória e cognição em pessoas com demência.
Avaliação Cognitiva com a ADAS-Cog
Para tornar mais concreta a observação dos efeitos do Jogo da Memória Afetiva, é possível recorrer a escalas padronizadas de avaliação cognitiva, como a ADAS-Cog (Alzheimer’s Disease Assessment Scale – Cognitive Subscale). Esta ferramenta é amplamente utilizada em pesquisas e na prática clínica para medir a memória, atenção, linguagem e capacidade de lembrar histórias ou eventos passados em pessoas com Alzheimer ou demência.
A pontuação total da ADAS-Cog varia de 0 a 70 pontos, sendo que valores menores indicam melhor desempenho cognitivo. A aplicação da escala permite comparar o desempenho do paciente antes e depois de intervenções cognitivas, como o Jogo da Memória Afetiva, oferecendo uma referência objetiva sobre melhorias na memória episódica e consistência narrativa.
No caso do Paciente K., que costumava contar a mesma história com versões diferentes e complementava trechos esquecidos com invenções, a aplicação da ADAS-Cog ao longo de quatro sessões ilustra como a prática do jogo contribuiu para a recuperação progressiva da história, redução de confabulações e consolidação da memória.
| SESSÃO | DESCRIÇÃO DA RESPOSTA | EVOLUÇÃO OBSERVADA | INDICADOR ADAS-Cog |
| 1º Sessão | Lembrou de algumas partes da história, mas inventou trechos para complementar. | Presença de lacunas de memória e confabulação. | Pontuação indica dificuldade na recordação episódica. |
| 2º Sessão | Percebeu que a versão anterior não estava correta e contou quase toda a história sem erros. | Maior consciência dos erros e melhora na recuperação da narrativa. | Pontuação melhora, indicando melhor precisão na memória episódica. |
| 3º Sessão | Lembrou da história completa, sem erros. | Recuperação plena da narrativa, memória consolidada. | Pontuação indica desempenho próximo ao ideal para memória episódica. |
| 4º Sessão | Repetiu a história completa e sem erros. | Consolidação da memória, manutenção da narrativa correta. | Pontuação mantida, evidenciando retenção e consistência da memória. |
Esses relatos evidenciam como a prática, ainda que simples, pode gerar resultados consistentes e abrir espaço para novas conexões emocionais e cognitivas.
Mais que Memórias Afetivas: Reconstruindo a Rotina e a Identidade
Este “Jogo da Memória” vai além de recordar nomes de familiares ou eventos passados. Ele é uma ferramenta poderosa para resgatar a autonomia e a identidade do indivíduo, que se perdem aos poucos com o avanço da condição.
Com o tempo, é comum que a pessoa com demência apresente esquecimentos relacionados a cuidados básicos, como:
- Alimentação e Hidratação: Muitas vezes, é preciso lembrá-la de comer ou beber água, como se os sinais de fome e sede não fossem mais percebidos.
- Higiene Pessoal: Atividades antes automáticas, como tomar banho ou cuidar da aparência, passam a depender de um comando externo.
O jogo pode ser expandido para incluir perguntas que reforçam essas rotinas diárias, devolvendo ao paciente um senso de controle e pertencimento. Perguntas como:
- “Quantas vezes por dia o(a) senhor(a) gosta de tomar banho?”
- “Qual é o seu perfume favorito que sempre usa pela manhã?”
- “O que costumamos comer no almoço de domingo?”
Esse tipo de pergunta resgata hábitos e preferências, lembrando à pessoa quem ela é.
Um elemento essencial é o oferecimento de pistas sutis e suporte sem constrangimento, criando um ambiente de confiança e segurança. Essa abordagem permite que os participantes exercitem suas lembranças sem frustração, favorecendo um envelhecimento cognitivo mais ativo e saudável. Não se trata apenas de memória, mas de reafirmar sua identidade. Cada resposta correta é uma pequena vitória na luta para preservar o “eu” que a doença tenta apagar.
o jogo de memória desenvolvido especificamente para pessoas com Alzheimer e demência surge como uma ferramenta valiosa. Ele estimula o raciocínio, promovendo benefícios diretos para o paciente, como o fortalecimento da autoestima, a manutenção da autonomia e a redução da ansiedade relacionada aos lapsos de memória.
Para a família e os cuidadores, o jogo tem um impacto igualmente significativo: oferece uma forma concreta de interação afetiva, facilita a comunicação, permite acompanhar o progresso cognitivo do paciente e fortalece os vínculos emocionais. Dessa maneira, a prática regular do jogo de memória não apenas contribui para o bem-estar do indivíduo com demência, mas também promove um ambiente familiar mais acolhedor, compreensivo e conectado, evidenciando que o cuidado com a memória vai além de exercícios cognitivos, é também um ato de empatia, presença e amor. Vale destacar que este jogo de memória é uma criação própria, desenvolvido com base em observações práticas e na experiência direta com pessoas com demência e Alzheimer. Sua concepção exclusiva reforça não apenas a efetividade da intervenção, mas também a dedicação em oferecer uma ferramenta pensada para o cuidado afetivo e cognitivo desses indivíduos.
Em resumo, a implementação de um “Jogo da Memória” no cotidiano do cuidado não é apenas um exercício cognitivo. É um ato de amor, uma forma de reconectar, de validar a existência e a história daquela pessoa e de garantir que, mesmo quando as memórias falham, a sua identidade e dignidade permaneçam intactas.
Referências
SACIDO, S. C. et al. Cognitive stimulation and cognitive results in older adults: A systematic review and meta-analysis. Archives of Gerontology and Geriatrics, v. 112, 104443, 2023.

Que legal o jogo da memória, vou aderir aqui.